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Vamos falar sobre a (não) representatividade

Representatividade é uma palavra linda. Ela descreve basicamente os indivíduos que representam alguma classe social ou de um povo. Numa utopia ela seria praticada em todas as esferas da sociedade, mas sabemos que, infelizmente não é assim que as coisas são.

O mundo do entretenimento, assim como em todas as outras a áreas sempre foi dominado por artistas brancos. Cinema e TV principalmente, na música de forma mais sutil. Mas, nos últimos anos, felizmente, Hollywood tem feito um visível esforço, ainda que não forte o suficiente, para aumentar a representatividade. Esse movimento tem sido visto especialmente nas adaptações de HQs.

A questão é que, quando a maior parte desses personagens foi criada, a época era outra. Negros eram extremamente invisibilizados na sociedade, isso quando não eram segregados. Comparada à quantidade de heróis e personagens brancos, realmente existem poucos que representam outras etnias. Por isso, alguns personagens mudaram quando adaptados para as telas.

O grande problema é quando parte do público reage negativamente a isso. Não tem problema nenhum a reclamação quando um personagem que os fãs cresceram amando aparece longe do que gostaríamos. Eu mesmo não gosto nem um pouco das mudanças que a Fox fez na Mística nos filmes dos “X-Men”, mas existe uma gritante diferença entre reclamação e a destilação de ódio e preconceito que temos ultimamente visto contra a atriz Anna Diop.

Anna foi escolhida para interpretar Estelar na série dos “Novos Titãs”. A personagem, que nos quadrinhos é uma alienígena laranja sem etnia definida, até então não tinha ganhado uma versão em live-action, mas nos desenhos animados tem traços caucasianos, nariz fino e cabelos lisos. As reclamações são normais para o universo das HQs, mas até onde isso é irritação do fandom e passa a ser uma manifestação velada (e muitas vezes explícita) de racismo?

Anna Diop em cena como Estelar no trailer de “Novos Titãs”

Infelizmente, o mundo nerd ainda é muito machista, racista e homofóbico. É comum, em fóruns online, vermos comentários misóginos falando que mulheres não tem força para carregar um filme/série sozinha, ou falando conta a diversidade na sexualidade ou até mesmo xingando artistas negros, os chamando de “macacos” ou “escravos”. Casos parecidos com o de Diop foram vistos com a escalação de Idris Elba como Heimdall em “Thor”, um personagem tradicionalmente loiro e de olhos claros, com Michael B. Jordan como o Tocha Humana de “Quarteto Fantástico” (2015), com Will Smith como o Pistoleiro em “Esquadrão Suicida” e mais recentemente com Zazie Beetz como Dominó em “Deadpool 2“.

Mas qual o problema de mudar a etnia de um personagem se a personalidade dele se mantiver intacta? Na verdade não há problema nenhum, mas o medo de mudar a já estabelecida supremacia branca quando se trata de representação é grande demais para a cabeça de parte do público. As pessoas preferem reagir, ofender, xingar e ironizar do que para e refletir o que aquilo representa para a nossa própria evolução como cultura.

Depois do lançamento de “Cara Gente Branca” em março de 2017, série com temas fortes como violência policial, protagonismo negro, política de cotas em universidades, relações interraciais e apropriação cultural, sofreu um enorme backlash de grupos religiosos e supremacistas nos EUA, que chegaram até mesmo a criar um movimento de cancelamento de assinaturas da Netflix se o serviço de streaming não retirasse a série de seu catálogo.

O elenco majoritariamente negro de “Cara Gente Branca” incomodou muita gente

Até mesmo em programas que deveriam ser desafiadores de preconceitos como “Rupaul’s Drag Race” há esse tipo de problema. Já há algumas temporadas, queens negras recebem ataques racista e até mesmo ameaças de morte vindas de um grupo de fãs que deveria, na teoria, aceitar e abraçar as diferenças, até mesmo por sentir na pele o que é a dor do preconceito. Kennedy Davenport, Bob the Drag Queen, Nina Bo’Nina Brown, todas sofreram ataques ao eliminar participantes brancas e queridinhas do público. Na última temporada, The Vixen, fez história ao levantar debates cobre como que mulheres negras são retratadas na sociedade, com o esteriótipo da “mulher negra e com raiva”. Vixen, no episódio de reunião, ao ver que estava sendo instigada à mais discussões pela própria apresentadora do reality, que também é negra, simplesmente se retirou, e lá vai mais uma onda de ataques racistas. É como disse Shea Couleé em entrevista com Shangela e Aja para a Billboard: “Rainhas de cor são menos celebradas que suas contrapartes bancas. Mas é a vida, nós trabalhamos o dobro para ter metade do reconhecimento.”

The Vixen e RuPaul em seus momentos de discussão na reunião da 10ª temporada de “RuPaul’s Drag Race”

Em premiações o quadro é, apesar de melhor que há anos atrás, ainda pouco representativo. Apenas uma negra em todas as mais de 90 edições do Oscar ganhou o prêmio de melhor atriz (Halle Berry em 2003). O mesmo acontece no Emmy (Em 2015 Viola Davis foi a primeira e até agora única negra a vencer o prêmio), que chega a sua 70ª edição este ano com quatro atrizes brancas e uma asiática indicada (a primeira da história).

E quando são feitos filmes que tratam sobre o racismo, eles nem sempre fazem da melhor forma. Exemplos disso são longas como “Histórias Cruzadas“, que apresenta a personagem de Emma Stone como a salvadora branca das empregadas negras que não têm voz ou “Um Sonho Possível” em que Sandra Bullock adota o negro pobre que não tem os pais. A narrativa muitas vezes é a de um heroi branco salvando negros indefesos. Por  outro lado temos filmes históricos como “Amistad” e “12 Anos de Escravidão” que apesar de importantes, são formas que Hollywood encontra de contar histórias, saciar a fome de quem realmente se importa com temas sérios como esse sendo abordados, mantém o assunto preso ao passado. Como se fosse um assunto já encerrado e não um problema cotidiano. E o espaço dado pelos estúdios para produções que tratem dos dias de hoje é mínimo, quando não é inexistente. Infelizmente “Fruitvale Station” e a versão dos cinemas de “Cara Gente Branca” são exceções.

Na música observamos o quanto, muitas vezes o sucesso para cantoras brancas, por exemplo, é absolutamente inquestionável. Mas quando se fala das negras, é dito que elas alcançaram o estrelato se escorando em homens. No Brasil vemos claramente como a aceitação do público é maior para Anitta, que mesmo não sendo branca tem a pele mais clara que algumas de suas colegas, que é para Ludmilla e Iza, que têm o mesmo público alvo e estilos musicais similares. Nosso país que, aliás, passou por um caso evidente de racismo no entretenimento recentemente. A quase ausência de atores negros no elenco da novela “Segundo Sol“, que se passa na Bahia, o estado com mais negros em todo o território nacional.

O elenco principal de “Segundo Sol” é quase inteiramente branco.

Executivos e grandes corporações, sejam elas de cinema, música ou de TV, normalmente só se importam em mudar o status quo se a existência dele estiver prejudicando os negócios. Exemplo disso é a existência do filme da “Mulher-Gato” (2004): o público pedia um filme protagonizado por uma mulher, a Warner autorizou a produção do longa e com uma protagonista negra, mas, não só não deu suporte quanto fez um trabalho porco e equivocado na confecção do roteiro e na escolha da direção. Quando o filme estreou, foi massacrado pela crítica e ignorado pelo público. O estúdio só lançou outro filme de super-heroína ano passado com “Mulher-Maravilha“. Coisa parecida ocorreu na Marvel antes do MCU. Depois do mal-fadado “Elektra” (2005) um filme-solo protagonizado por uma mulher só estreará em fevereiro de 2019. Se “Luke Cage” e “Pantera Negra” tivessem fracassado a probabilidade maior é que a história fosse parecida (ambos os projetos enfrentaram protestos de supremacistas branco nos EUA).

O caminho é longo e a cultura pop está longe de se equiparar com a diversidade que há no mundo. A representatividade é linda e importa sim. Me enche os olhos ver crianças negras olhando para as telonas e finalmente se verem nelas. Pantera Negra, Tempestade, e sim, Heimdall e Estelar são todos parte disso. E já passou da hora dos fãs pararem com o ódio gratuito e com o preconceito e passarem a celebrar essas diferenças. Se quiserem dar opiniões falem sobre a performance, não sobre a cor da pele. Racismo é crime e, acima de tudo, é inumano. E, sinceramente é um absurdo que textos como esse ainda tenham que existir em pleno 2018.

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Escrita por Lucas Santana