É numa visita nada convencional – e recheada de metalinguismo – à Renascença Inglesa que conhecemos a história dos irmãos Nick e Nigel do Rêgo Soutto e sua competitividade com Shakespeare, o astro pop e bem sucedido escritor da época.
O musical – originalmente escrito por Karey Kirkpatrick e John O’Farrell e músicas de Karey e Wayne Kirkpatrick – estreou na Broadway em 2015 e colecionou mais de uma dezena de indicações ao Tony Awards. No Brasil, a versão ficou por conta do experiente e premiado Claudio Botelho – responsável pelas versões de aclamados musicais como “O Fantasma da Ópera”, “A Bela e a Fera”, “Miss Saigon”, “Les Misérables” – junto à Gustavo Barchilon – ator, produtor e diretor envolvido em projetos grandiosos como o “Cirque du Soleil”, no espetáculo “Amaluna” e na montagem do musical “Magic Mike”, em Londres –, que cuidou da direção artística e texto adaptado.
A direção musical ficou nas mãos do competente Thiago Gimenes, que esteve envolvido em obras relevantes como “Uma luz cor de luar”, “Zorro, o musical”, “The Last Five Years”, e teve composições suas interpretadas por grandes nomes da música brasileira, como Zizi Possi, que cantou “faltavam seus olhos”, na trilha sonora da novela “Tempo de amar”. Thiago fala sobre a riqueza que “Alguma coisa podre – A comédia mais hilária da Broadway” traz ao fazer referência a quase 90 musicais ao longo dos seus 130 minutos de duração e do brilhantismo empregado ao trazê-las, por vezes citando “Rent” ou “Annie”, por exemplo, em apenas 2 ou 4 compassos de arranjos. Alonso Barros – responsável pela coreografia de grandes musicais como “Peter Pan”, “Despertar da Primavera”, “Pippin” e retentor de 3 troféus no Prêmio Bibi Ferreira como Melhor Coreografia, no Brasil e, também premiado em Viena, pelo musical “The Last Five Years” – é diretor de movimento e coreógrafo do espetáculo. Alonso se mostra empolgado ao dizer que, pela primeira vez, se depara com um material tão bom e desafiador, a ponto de precisar transpor o movimento à dramaturgia envolvida em cada número e de precisar lidar com a comédia de maneira tão séria.
A história nos apresenta a frustração e bloqueio criativo enfrentados pelos artistas e irmãos Nick e Nigel, obrigados a se reinventarem com uma nova peça teatral, na mesma época – ano de 1595 – em que o renomado escritor Shakespeare é considerado um verdadeira celebridade, seguido e aplaudido pelas multidões. Preocupado e necessitado de dinheiro Nick recorre ao vidente e sobrinho de Nostradamus para descobrir qual seria o maior sucesso dos palcos no futuro. Nessa visão (ainda que turva), o adivinho diz que o público vai se encantar com histórias contadas através de músicas e danças e, a partir dessa premissa, o enredo é desenrolado e o riso é garantido. Com muitas referências e piadas que satirizam o, até então, desconhecido gênero teatral e os próprios personagens criados pelo escritor inglês, a plateia não contém o riso saindo do teatro satisfeita com a apresentação. Além de abordar outros assuntos como o machismo que impedia mulheres de arrumarem empregos, ou a repressão imposta pela religião, o musical não deixa de ser uma grande celebração à Shakespeare e seu legado.
Dentre as diversas surpresas no elenco – que nos apresenta atores estreantes nesse gênero e responsáveis por um frescor revigorante em cena – temos Laila Garin, premiada com um Bibi Ferreira de Melhor Atriz e veterana no segmento dos musicais, mas nova na comédia e em grandes espetáculos da Broadway. Laila, que viveu Elis Regina em “Elis, a musical”, Joana em “Gota d’água [a seco]” e Macabéa em “A hora da estrela ou o canto de Macabéa”, surpreendeu os espectadores ao ser anunciada no elenco de “Alguma coisa podre” justamente por estar inserida nesse local tão diferente do que estamos acostumados a vê-la. Ela afirma que é uma pessoa mais ligada à música e ao teatro brasileiros por questões de oportunidades e também por gosto pessoal, mas não conseguiu se desvencilhar do convite de Gustavo quando se deparou com um texto incrivelmente inteligente que se faz cômico ao debochar do que ele mesmo propõe. Além disso, a atriz quis se arriscar na comédia dizendo que passou o ano anterior se convencendo de que gostaria de experimentar esse novo lugar, onde tem aprendido muito observando seus parceiros de cena. Bea, personagem interpretada por Laila e que é esposa de Nick do Rêgo Soutto, encanta a plateia na mesma proporção em que a diverte. O público é imediatamente hipnotizado por seu canto – sempre certeiro e irretocável – já nas primeiras palavras e, no desenrolar da história (e da sua personagem), arranca gargalhadas do público mostrando que sua estreia no gênero foi assertiva e sagaz.
Agora falando sobre os estreantes nesse universo, temos Marcos Veras. O ator, que também é humorista, roteirista e apresentador, se lança nesse desafio e reconhece as dificuldades às quais os profissionais de musicais – onde dessa vez ele está incluído – são submetidos. Apesar de confessar a complexidade que é estar em cena, o ator não nega que sentia falta dessa interação entre equipe e elenco numerosos, já que vinha se apresentando em três monólogos desde 2014 e, consequentemente, com um time muito mais enxuto. Em cena, é nítida a química que ele mantém com os atores com quem seu personagem, Nick, interage, o que torna toda a experiência mais crível e ainda mais divertida do que já é. O timing para comédia que Veras possui dispensa comentários e ele tem demonstrado estar confortável e confiante com a junção do canto, dança e interpretação exigidos ao longo da narrativa.
O confuso sobrinho de Nostradamus, divertidamente interpretado pelo ator e escritor Wendell Bendelack também marca sua estreia em um grande musical da Broadway desempenhando seu papel com maestria. Ele se diz contagiado com o talento e disposição de seus colegas de profissão e espera que o público seja igualmente contagiado pelos números deslumbrantes apresentados por eles. Seu entrosamento com Veras é perceptível e logo que o ator surge em cena fazendo suas primeiras adivinhações acerca do futuro promissor que os musicais alcançarão, os espectadores já estão rendidos e entregues.
O papel de William Shakespeare, a estrela de “Alguma coisa podre”, ficou sob o competente domínio do também estreante George Sauma, que vestiu muito convincentemente a roupa de ídolo do povo. Seu personagem passeia muito à vontade pelo palco aceitando de bom grado as bajulações que seus fiéis seguidores lançam euforicamente sobre ele e, como astro mimado e extremamente egocêntrico, ele faz o possível para se manter sob os holofotes e aplausos, como se sua vida dependesse disso. Sauma possui uma desenvoltura hipnotizante para a comédia e surpreendeu positivamente o público ao demonstrar semelhante destreza com complexos números de dança e sapateado.
Ainda temos Léo Bahia doando seu talento ao interpretar o tímido Nigel. Sua atuação é excepcional nos momentos compartilhados com Veras e o dinamismo entre ambos é ótimo, mas é quando a personagem interpretada por Bel Lima, Portia, entra em cena que vemos esse duo crescer e atingir um nível inimaginável na arte de fazer rir. A amizade de longa data que os atores nutrem fora dos palcos funciona muito bem colocando-os num lugar de familiaridade que só soma ao casal apaixonado e de romance proibido – nessas horas entendemos a genialidade do texto e as brincadeiras com a própria obra de Shakespeare sugestionadas por ele. Como Bel explica, a relação pura entre Nigel e Portia simboliza a mesma relação entre o artista e o admirador da arte e Leo complementa dizendo que essa admiração serve de combustível para a crescente autoconfiança de Nigel. E é nesse equilíbrio habilmente dosado que encontramos um caminho irresistível para perder o ar de tanto rir.
Rodrigo Miallaret interpreta o fervoroso Irmão Jeremias, o pai de Portia. Assistí-lo é hilariante por conta da dualidade de seu personagem, dividida entre fazer a vontade do Senhor ou dar vazão aos seus desejos mais secretos e reprimidos, carregados por ele na mesma proporção. O pomposo Lorde Clapham ficou sob a responsabilidade de Thiago Perticarrari e vê-lo flutuar pelo palco com sua roupa espalhafatosa e seus trejeitos propositalmente exagerados na dramaticidade também nos diverte muito. Tony Germano nos entrega um Shylock enérgico e muito bem construído. Suas repetições, tanto nos gestos quanto na fala (e seu sotaque comicamente carregado) dão um toque a mais para sua brincadeira durante o musical. A movimentação de Marcelo Vasquez e Sandro Conte é limpa e precisa. Os atores sabem exatamente como se portar em cena tornando a tarefa de desviar o olhar quase nula.
Os atores se mostram extremamente entrosados e bem ensaiados durante a apresentação, mostrando que a afirmação e o trabalho de Alonso Barros foram executados com destreza. As versões, tanto do texto quanto das músicas, estão impecáveis e tão satisfatórias quanto as versões originais. Além disso, foram acrescentadas à elas muitas referências relacionadas ao nosso país e cultura, como por exemplo, quando o cantor Djavan é citado.
O elenco é composto por Leo Bahia, Bel Lima, Rodrigo Miallaret, Tony Germano, Thiago Perticarrari, Andrea Marquete, Renato Bellini, Daniel Cabral, Marcelo Vasquez, Andreza Meddeiros, Nathalia Serra, Carol Botelho, Ana Araújo, Sandro Conte, Ingrid Gaigher, Bruno Kimura, Sara Milca, Roberto Justino, Laila Garin, Marcos Veras, George Sauma e Wendell Bendelack.
Com produção da Touché Entretenimento e da Barho Produções, o musical fica em cartaz no Teatro Porto Seguro, até o dia 6 de agosto, às sextas às 20hs, sábados às 16hs e 20:00 e domingos às 15hs e 19hs. Os ingressos podem ser adquiridos na bilheteria do próprio teatro ou no site da Sympla. O teatro possui estacionamento próprio e gratuito para os espectadores.
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