“Anastasia, o musical” baseia-se no conhecido conto da princesa russa que perdeu a família numa chacina e cresceu sozinha em busca de respostas devido a amnésia causada pelo trauma da tragédia. A animação homônima, lançada em 1997 pela Fox Animation Studios, foi um sucesso e toda a nostalgia vivida naquela época pode ser revisitada no palco do Teatro Renault até maio.
A adaptação musical desse clássico estreou na Broadway no primeiro semestre de 2017 e, desde as previews, que aconteceram um mês antes, deixou os espectadores encantados com a magnitude da montagem para os palcos americanos. 5 anos após sua estreia por lá, chegou a hora de recebermos a primeira versão réplica dessa história tão apaixonante.
Aqui no Brasil, as versões das músicas – tanto as já conhecidas, quanto as que foram compostas especialmente para o musical – foram escritas pela premiada dupla Bianca Tadini e Luciano Andrey, vencedores do Prêmio Bibi Ferreira de Melhor Versão, por Mudança de Hábito, no ano de 2015. Mesmo as letras não sendo idênticas às da animação da Fox, alguns trechos foram mantidos agradando também os fãs mais apegados ao clássico. O trabalho da dupla de versionistas, que já repetiu a parceria em outras ocasiões, é primoroso. Sempre fico com os olhos marejados com a emoção contida na letra e interpretação da canção “eu sonhei”, por exemplo.
E falando em interpretações emocionantes, o ensemble do espetáculo se faz presente e suas vozes potentes e precisas preenchem o espaço com magnitude num uníssono impecável. No número “a última dança dos Romanov”, logo no início do musical, a coreografia se soma ao coro trazendo um equilíbrio perfeito para o encantamento da audiência. Tudo é distribuído e balanceado com perfeição e cada talento dali é nitidamente aproveitado.
Giovanna Rangel assume seu primeiro grande papel em musicais ao dar vida à personagem título da obra. No começo do espetáculo a atriz nos entrega uma Anya endurecida pelas dificuldades impostas pela vida e, ao mesmo tempo, vulnerável e frágil quando se esforça para recordar de onde vem e qual é a sua verdadeira história. Nessa busca brilhantemente harmoniosa, ela nos dá vislumbres de que existe alguém da realeza vivendo ali dentro – sutilmente, a princípio, mas cada vez mais nítida e presente conforme o transcorrer do tempo. O instante em que Giovanna canta “uma vez em dezembro” é arrebatador. Seu canto é seguro e acertado e tudo nessa cena funciona precisamente. Nesse momento, vislumbres de seu passado junto à realeza surgem na forma de silhuetas que dançam graciosamente pelas paredes do cenário ao mesmo tempo em que o ensemble surge igualmente gracioso e com posturas e figurinos esplendorosos, também dignos da nobreza. A voz imponente da atriz somada à do coro e à orquestra fortalecem ainda mais essa ocasião tão memorável. “Viagem ao passado” encerra o primeiro ato confirmando a escolha certeira da atriz para o papel. Dessa vez, Giovanna encara a plateia completamente sozinha e não hesita em momento nenhum ao atingir notas longas e potentes enquanto a torre Eiffel vai surgindo imponente pouco a pouco atrás de si.
Rodrigo Filgueiras, que interpreta o jovem Dmitry, é um nome conhecido na cena de teatro musical de São Paulo e seu trabalho como bailarino é sempre irretocável. Ele passou por grandes produções como “A Pequena Sereia” – onde conseguiu interpretar o divertido Sabidão e entregar um número de sapateado complexo muito elogiado e aplaudido – e por “Chicago” – conferindo uma dança estilo Bob Fosse igualmente bem executada. Ao emprestar sua arte ao personagem Dmitry, o ator, mais uma vez, encanta o público com seu talento e sua voz. O rapaz passeia confortavelmente entre o papel de um canastrão ambicioso que só se importa com o seu próprio bem estar e um jovem desajeitadamente apaixonado que demora tempo demais para perceber que está amando. Essa construção foi muito bem desenvolvida e a satisfação ao vê-lo assumir um papel tão desafiador fica nítido com o aplauso demorado da plateia no fim da música “o meu lugar”, executada com muita determinação e sentimento, conferindo ao público a mesma emoção.
A parte cômica do espetáculo fica sob a competente responsabilidade dos veteranos Tiago Abravanel – que marca seu aguardado retorno aos musicais – e Carol Costa. Tiago interpreta o gatuno Vlad, melhor amigo de Dmitry, com quem tenta encontrar e treinar uma moça capaz de se passar pela desaparecida grã-duquesa Anastasia, para que assim consigam a recompensa oferecida pela Imperatriz Viúva, até então, única sobrevivente da linhagem dos Romanov. Vlad também viveu um romance escandaloso com a dama de companhia da Imperatriz, Lily, interpretada por Carol, que levou o Prêmio Bibi Ferreira de Melhor Atriz Coadjuvante por seu papel como Chiquinha, em “Chaves – Um Tributo Musical“. A atriz brilha desde sua primeira aparição e, ao cantar “pátria que eu amei”, impressiona a audiência pelo talento e invejável timing para a comédia. A amizade que os atores cultivam fora dos palcos trouxe uma naturalidade e conforto notórios nas cenas em que estão juntos. É perceptível a familiaridade e divertimento de ambos durante a execução da música “a nobre e o seu plebeu”, que, consequentemente, arranca gargalhadas sinceras do público.
O antagonismo do musical foi inteligentemente modificado do clássico animado da década de 90. O temível feiticeiro Rasputin foi substituído por Gleb, um general bolchevique que tem a difícil missão de continuar o que seu pai começou quando exterminou a família dos Romanov anos antes. O papel é interpretado por Luciano Andrey, que traz um tom sombrio e cheio de seriedade para o personagem. As camadas de Gleb, que ora fica dividido entre cumprir o papel que lhe foi obrigado e ora se vê lutando contra essa obrigatoriedade, são construídas ao longo da história de maneira brilhante. Andrey consegue transmitir a impessoalidade necessária para convencer a plateia de que Gleb vai dar continuidade ao legado de seu pai e as músicas cantadas por ele sempre trazem uma carga dramática e um tom escuro ao musical.
Edna D’Oliveira, que personifica a Imperatriz Viúva, traz todo o requinte digno de um membro da realeza com sua postura e autoritarismo imposto no tom de voz. É satisfatório vê-la caminhando pelo palco com tamanha determinação e requinte. A dinâmica entre ela e os demais personagens, seja com sua dama de companhia, com o Vlad ou com o restante da família, é curioso. É clara a posição de autoridade que ela transmite na maior parte do tempo, mas é bonito assisti-la se despir dessa armadura diante da neta, a quem ela sempre amou e por quem aguardou por tanto tempo.
O cenário conta com telões de alta definição e são extremamente funcionais. Muitas vezes, nosso olhar é enganado com tamanha perfeição e sincronicidade das imagens. No início do segundo ato, por exemplo, durante a execução da música “Paris rouba o seu coração”, há explosões de fogos de artifício no topo da torre Eiffel que surpreendem os espectadores de maneira muito positiva. Esse número em si é um deleite. O trio de protagonistas é envolvido pela mágica atmosfera daquele lugar e, junto com o ensemble, dançam e cantam alegremente contagiando o público. Todos se movimentam impecavelmente e, mais uma vez, tudo está exatamente aonde deveria. A limpeza e precisão dos movimentos é impressionante. Outro momento digno de menção é quando o trio de protagonistas saem da Rússia em direção à Paris de trem. Essa passagem é mais um bom exemplo do aproveitamento dos telões de maneira tão inteligente.
Produzido pela T4F Musicais e pela Caradiboi, o musical está em cartaz no Teatro Renault, às quintas e sextas às 21hs, sábados às 17hs e às 21hs, e domingos às 16hs e às 20hs. Os ingressos custam a partir de R$ 45 e podem ser adquiridos no site Tickets For Fun ou na bilheteria do próprio teatro.