Em comemoração ao Halloween, comemorado no próximo sábado, dia 31, a Poltrona Vip está fazendo uma pequena jornada por alguns clássicos modernos do terror ao longa dessa semana. Continuando a série, depois da franquia “Pânico” e de “Atividade Paranormal”, hoje é dia de falar sobre o fenômeno “Corra!“.
Os filmes de terror são, desde os primórdios da história do cinema, usados como palco para metáforas sobre alguns dos mais sérios problemas da sociedade. As sensações de medo e repulsa são, muitas vezes, usadas pelos diretores e roteiristas como espelhos da realidade.
Desde “A Noite dos Mortos-Vivos” (1968), por exemplo, George A. Romero usa zumbis para retratar a pobreza e a fome das camadas mais pobres da população. “O Bebê de Rosemary” (também de 1968) é sobre uma mulher passando forçadamente por uma gravidez indesejada. O filme tem fortes conceitos feministas em uma época que era necessária ainda mais luta pelos direitos sobre seus próprios corpos.
Hoje uma nova onda filmes repletos de críticas à sociedade invade as telonas depois de anos de escassez desse tipo de obra. E muito dessa tendência se deve ao sucesso de “Corra!”. Lançado em fevereiro de 2017, o longa, dirigido e escrito por Jordan Peele, arrecadou US$ 255,4 milhões nas bilheterias mundiais, uma grande quantia para um filme original desse gênero.
A trama de “Corra!” acompanha Chris (Daniel Kaluuya) é um jovem fotógrafo que está prestes a viajar para conhecer a família de sua namorada caucasiana Rose (Allison Williams). De início, ele acredita que o comportamento excessivamente amigáveis por parte da família dela é uma tentativa de lidar com o relacionamento de Rose com um rapaz negro, mas, com o tempo, Chris percebe que a família esconde um segredo sombrio muito mais perturbador.
Oriundo do mundo da comédia, Jordan trabalhou anteriormente nos programas de esquetes “MADtv” e em “Key & Peele“, neste último ao lado de Keegan Michael Key como ator e roteirista. Ele, no entanto, nunca escondeu a vontade de produzir algo voltado para o terror. “Corra!” foi seu debut na cadeira de direção, e seu trabalho não poderia ter sido melhor. A atmosfera de suspense é perfeita para o filme, o público não entende o que exatamente está acontecendo até o terceiro ato. A única certeza é que algo não está certo com a família.
Antes do lançamento os trailers e prévias liberadas não davam conta do que se tratava a trama, o que ajudou ainda mais a aura de mistério ao redor do filme. A condução perfeita de uma história cheia de nuances e sutilezas que causavam estranheza e desconforto, principalmente quando Walter (Marcus Henderson), Georgina (Betty Gabriel) e Andre (Lakeith Stanfield) estavam em cena.
Apesar de não ser um terror tradicional, apoiado em sustos fáceis, representações de monstros e espíritos ou com cenas apelativas com baldes de sangue falso, o filme tem grande apelo ao abordar questões importantes, principalmente ligadas a questões raciais. Inicialmente achamos que a maior discussão proposta estaria nas sensações de desconforto e receio causadas pelo relacionamento inter-racial do protagonista. Mas em cada fala de personagens brancos ao longo do filme vêm frases carregadas de racismo, às vezes velado, outras vezes mais explícito.
A cena da festa dos pais de Rose é um prato cheio para análise. Cheio de idosos caucasianos, o protagonista recebe comentários pautados por falas que apresentam hiperssexualização do corpo do homem preto, uma noção de superioridade negra em esportes são alguns exemplos. Em outra sequência desta mesma cena ocorre um leilão pelo corpo de Chris, uma grande metáfora tratando dos leilões de escravos feitos até o século XIX.
A cena é uma das mais desconfortáveis de “Corra!” por demonstrar o quanto Chris, apesar de demonstrar estranheza com as perguntas invasivas e preconceituosas, não se mostra surpreso com o comportamento dos convidados. É a sensação de que algo não está certo com os outros personagens pretos em cena que o deixa desconfiado. E é essa agonia, que infelizmente, aproxima o filme ainda mais da realidade o que mais incomoda. Muitos pretos já escutaram frases idênticas às proferidas durante a festa.
O filme foi extremamente aclamado pela crítica e pelo público, que exaltaram a mistura de um humor ácido com suspense, usando o desconforto como instrumento para fazer crítica ao preconceito racial na sociedade estadunidense. Em 2018, “Corra!” foi indicado a quatro Oscars, icluindo melhor filme e melhor diretor, feito incomum para o gênero. A produção foi premiada com o prêmio de melhor roteiro original, pela primeira vez em 90 anos entregue para um homem negro.
Após a excelente recepção de seu filme de estreia, Peele levou outra pérola aos cinemas em 2019: “Nós“, outro grande sucesso escrito e dirigido por ele e protagonizado por Lupita Nyong’o e Winston Duke, dessa vez fazendo críticas à divisão de riquezas nos EUA e à políticas desiguais que mantém a extrema pobreza no país. O cineasta também é responsável pela produção de “Lovecraft Country“, série de fantasia e ficção científica da HBO que acompanha um trio de personagens pretos em uma viagem fantástica pelos EUA dos anos 50. “Corra!” está disponível no catálogo do Now.